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Luis Manuel Gaspar - Um lugar nos olhos

EXPOSIÇÃO | 2 julho - 7 setembro | Sala de Referência | Entrada livre

 

Minudências

João Paulo Cotrim

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E no galope, ao bater de asas
do último insecto, roubei-te as imagens:
construíram-nos em pedra, rosa
sem fios de fogueira, a pele apartada
dos pulsos. Há um tremor por excesso de pupilas,
o brilho que me arrasta ao arrepio
para o teu campo visual


Luis Manuel Gaspar, Pandora (Averno, 2003)

 

 

À força do bater de asas, Luis Manuel Gaspar (Lisboa, 1960) ganhou uma reputação. Tantas pupilas lança de encontro aos textos, sobretudo poéticos, sobretudo de amigos, que lhes detecta as falhas de natureza: gralhas, incorrecções, dislexias e paralisias. Possui memória de pedra e a atenção do fogo, qualidades ancestrais que o tornam notável organizador de edições literárias, com o que isso implica de intuição e paciência. A obra volátil torna-se completa por via do seu afã. Há quem diga que basta passar pelos sítios, conversar com este e aquela, para que a sua vetusta pasta recolha com simplicidade os segredos e detalhes dos artistas de nomeada como do poeta mais obscuro. Mas ainda se tem desfeito revisor, aquele que volta a ler, que persegue o galope da frase até que as palavras se tornem definitivas. Em qualquer destas suas vocações da releitura, o seu brilho está no detalhe.

 

Como nenhum outro ilustrador, o essencial da sua obra pode ser encontrado algures entre a Natureza e a palavra (nos livros de poesia, capas e miolo; dando rosto aos volumes de ficção; em livro infantil com animais; nas bandas desenhadas que ilustram poemas de Sophia, Pessoa, O’Neill entre tantos outros). luis_m_gaspar_capa2Uma parte deste campo visual radica no naturalismo mais despojado, aqui e ali retocado pelas cores vibrantes do acrílico. São lugares (recantos de cidade) e paisagens (de beira-mar), gatos em diversas poses com todos os pêlos (sim, contei-os…), moscas ou objectos. E retratos, de escritores ou de felídeos. A riqueza de pormenor vai do cenário de ópera íntima à dentição completa do peixe. A segunda parte acomoda-se na gaveta dos surrealismos, como se as gralhas dos textos se transfigurassem em híbridos do mundo natural. Tenho-os no aconchego da mão e não me canso de os mirar: aracnídeos em flor, ramos secos que se locomovem em patas de aranha, pássaros que se desfazem em estames e corolas, ausências de branco no coração de um bailado de folhas. Neste reino desenhado de Gaspar com pujante ciência, animal e vegetal e inanimado fazem-se criatura única que evolui perante os nossos olhos na superfície do papel. Uma composição por vezes abstracta que faz todo o sentido. O que parecia arbitrária conjugação de factores pulsa uma naturalidade óbvia, que parece dizer-nos, então não tinhas reparado que os gravetos de pinho são invertebrados de exoesqueleto quitinoso?

 

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Por junto e sem risco, podemos afirmar estar em presença de um pequeno ecossistema circulante, também ele orgânico, de desenhos parasitas dos livros e das palavras. Mesmo que não sejam detectadas outras mais evidentes relações, partilham espaço e alimentação. Luis Manuel Gaspar foi ao museu de uma história natural paralela e esquecida, onde o universo fazia sentido através da catalogação sistemática em enciclopédias ilustradas, e libertou a força primordial das coisas: esqueletos e ossos, corpos e suas partes, folhas, ferramentas, plantas, pétalas e pólenes e luminescências, becos sem saída, paredes decadentes, azulejos, uma gama de fórmicas além da inesgotável lista de insectos, de moscas e faróis. Portanto, todo um vocabulário que se vai reinventando e tecendo a teia onde a morte se há-de sentar.

 

O estilo minucioso de Luis-sem-acento tem como assinatura a tinta-da-china e o aparo fino, tão fino como a sua elegância. Não dá um passo sem sépia. Mas a gama de cor, por exemplo nas citadas bandas desenhadas (publicadas no jornal Viva Voz e na revista Ler) onde o poema corre como arrepio suscitando variações do olhar sobre sítio significante em modo disléxico e não ilustrativo, torna-se personagem. Pela intensidade da paleta generosa e densa, as texturas, a luz, os céus acontecem mais reais que o real. Como na poesia que também pratica, o museu naturalmente de Luis enche de carne e veias o farol assim como dá ao granito a leveza do veludo.

 

(texto introdutório do catálogo Um lugar nos olhos, 2011)