A. H. de Oliveira Marques (1933-2007)
Uma vida pela História

Por Rodrigues da Silva

O homem que no passado dia 22, aos 73 anos, morreu numa cama do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, vítima de problemas cardíacos, era um dos maiores historiadores portugueses. Chamava-se A. H. de Oliveira Marques e foi um dos raros, se não mesmo o único, que aliou um conhecimento profundo de duas épocas totalmente distintas da nossa História: a Idade Média e a I República. A ambas dedicou uma vida de labor, bem como a estudos sectoriais (a Maçonaria e os Seguros, por exemplo), logrando igualmente obras de síntese e mesmo de divulgação, como as diversas Histórias de Portugal que dirigiu e, no todo ou em parte, escreveu.

Um milhar de artigos científicos, seis dezenas de livros e décadas de magistério como professor universitário são o corolário de uma postura caracterizada pelo rigor da investigação, o primado do documento e uma escrita historiográfica assente nas estruturas. Neste particular, é significativo que uma das suas melhores obras, História da 1.ª República. As Estruturas de Base (Iniciativas Editoriais, 1979), se organize a partir, antes de mais, da População, para só depois incidir, sucessivamente, na Economia, na Sociedade e nas Instituições, no Direito, nas Finanças e na Organização do Estado, para com a Política se concluir. O mesmo em Portugal e a Instauração do Liberalismo (Presença, 2002), volume da Nova História de Portugal que coordenou: a base demográfica é por onde tudo se inicia, seguindo-se capítulos dedicados à revolução técnica, aos vectores económico-financeiros, à sociedade, etc., e, finalmente, à vida quotidiana.

Se no estudo sistemático da I República A. H. de Oliveira Marques pode ser considerado um precursor (os seus primeiros trabalhos nesta matéria datam de antes do 25 de Abril), na importância dada à vida quotidiana ele foi um pioneiro. A sua obra magistral publicada nos anos 60, A Sociedade Medieval Portuguesa, a par da sua Introdução à História da Agricultura em Portugal, é um marco relevante da nossa historiografia, na linha, aliás, da sua tese de doutoramento em História (1960), A Hansa e Portugal na Idade Média. O relevo dado à Economia, esse vinha na sequência dos fecundos trabalhos de um homem da geração anterior, Vitorino Magalhães Godinho, ainda hoje o maior historiador português vivo.

Mas Oliveira Marques foi também um professor emérito, como a generalidade dos seus alunos o reconhece. E como alguns o provaram, quando, em 1964, estando ele no desemprego, se quotizaram para lhe pagar o ordenado, recebendo em troca aulas de História Medieval, dadas na sua casa da Rua Ramalho Ortigão. Na Faculdade de Letras de Lisboa, no único período em que lá foi professor (entre 1957 e 1964), apesar de apenas assistente, Oliveira Marques era, sem dúvida, a grande referência do ensino da História pura e dura. Paleografia, História da Idade Média e História de Portugal I, qualquer delas um osso duro de roer, nas mãos de Oliveira Marques caracterizavam-se quer pela minúcia da análise, quer pelo brilhantismo da síntese, e, mesmo quem não era aprovado à primeira, reconhecia o mérito do professor.

Discreto, algo distante, mas gentil e sempre disponível para os seus alunos e incansável a apoiá-los – fossem eles caloiros ou licenciandos –, Oliveira Marques era então já imensamente respeitado e estimado na Faculdade. E mais ainda o seria quando, durante a longa greve de 1962, na linha do catedrático de Românicas Luís Filipe Lindley Cintra, daria a cara pelos estudantes em luta (e foi dos poucos a dá-la). Um comportamento que, por vingança ministerial, adiaria sine die o seu concurso para professor extraordinário. E, em breve, após uma cabala tenebrosa de que foi vítima, o levaria a pedir a demissão do corpo docente da escola pela qual se licenciara, doutorara e iniciara a sua carreira de professor. E onde, antes – poucos o sabem –, fora presidente da direcção da Comissão Pró-Associação de Estudantes.

António Henrique Rodrigo de Oliveira Marques nasceu a 23 de Agosto de 1933, em S. Pedro do Estoril, descendente – facto extremamente raro – de famílias todas nadas em Lisboa desde o século XVI, como fez questão de acentuar ao JL n.º 642, de 24 de Maio de 1995, cuja capa lhe foi dedicada. Filho único de pais salazaristas (mas pró-Aliados) da média-alta burguesia, e neto de um republicano afecto a Afonso Costa, o jovem António Henrique começa a politizar-se enquanto aluno (excelente) do Liceu Gil Vicente, onde seria colega de Mário Murteira, José Mattoso, Augusto Sobral e Luís Barbosa. É aí que, em 1949, é convidado a ingressar no MUD Juvenil, o que recusa, por sabê-lo conotado com o PCP. É aí também que se decide por Económicas, curso que inicia, para depois o trocar por Histórico-Filosóficas, no qual teria como colegas João Bénard da Costa, Miriam Halpern Pereira e Sacuntala de Miranda.

Licenciado em 1956 com 17 valores (uma média altíssima para a época, em Letras), com uma tese intitulada A Sociedade em Portugal do Século XII ao Século XIV, ruma de imediato à Alemanha, para começar a preparar o doutoramento. E em 1957-58 inicia a sua carreira docente como assistente da catedrática Virgínia Rau, no mesmo ano que Jorge Borges de Macedo e Rogério Fernandes. No mesmo ano também das eleições de Humberto Delgado, que apoia publicamente contra o parecer da hierarquia escolar. Na Faculdade de Letras se mantém até 1964, quando é forçado a partir para os Estados Unidos, onde é convidado a dar aulas nas Universidades de Alabama e da Florida. Será na América, que, entre 1965 e 1969, sem arquivos para poder prosseguir os seus estudos da Idade Média, começa a interessar-se pelos do século XX. E será aí também que publica a versão inglesa da sua primeira História de Portugal.

Em 1969, já com Marcello Caetano como chefe do Governo, Oliveira Marques regressa, mas as portas da Universidade fecham-se-lhe. E é então que decide pôr um anúncio no Diário Notícias do seguinte teor: «Doutorado procura emprego.» Numa época em que tal não se imaginava possível, foi um escândalo nacional e uma vergonha para o país. O próprio Marcello Caetano (que muito o considerava como historiador) inquieta-se, chama-o a São Bento, mas tudo o que consegue é que o ministro da Educação Veiga Simão lhe conceda uma bolsa para estudar História Medieval. Oliveira Marques aceita, mas desiste dela quando o mesmo ministro mete «gorilas» nas Faculdades e as Associações de Estudantes são assaltadas pela PIDE.

De novo no desemprego, salva-o o seu ex-colega do Gil Vicente, Luís Barbosa, então um alto quadro da Companhia de Seguros Império, atribuindo-lhe uma bolsa, de que irá resultar Para a História dos Seguros em Portugal. Corre o ano de 1973, e Oliveira Marques, impedido de dar aulas e ávido de lutar contra o regime sem se subordinar ao PCP, pergunta a António Coimbra Martins «que fazer?». Este sugere-lhe que vá ter com Mário Soares a Paris, este remete-o para Dias Amado, e é por intermédio deste que o historiador se filia na Maçonaria, na qual chegará a ser grão-mestre adjunto e grau 33 do Supremo Conselho e membro do Grande Conselho Maçónico, o órgão mais importante do Grande Oriente Lusitano. O que lhe permitirá, mais tarde, escrever a História da instituição em Portugal.

E chega o 25 de Abril. Oliveira Marques tem 40 anos e esperar-se-ia que as portas da Universidade, enfim, se lhe reabrissem. Lindley Cintra e Orlando Ribeiro convidam-no para Letras, ele exige entrar para o quadro efectivo da Faculdade, mas os estudantes opõem-se (!). Novo convite, agora para a Faculdade de Direito, mas desta vez são os professores que dizem não. Até que o seu ex-aluno Mário Sottomayor Cardia, então ministro da Educação do I Governo Constitucional, presidido por Mário Soares, decide fazer dele reitor da Universidade Nova de Lisboa. Oliveira Marques recusa o cargo, mas, já catedrático, aceita presidir à comissão instaladora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daquela instituição. Da qual, por razões cuja história ainda está por fazer, é forçado a demitir-se década e meia depois, vindo a jubilar-se como professor do Departamento de Estudos Alemães da Nova, onde Yvette Centeno o acolhera.

De então para cá, o seu percurso é conhecido. Ou não, porque A. H. de Oliveira Marques foi sempre muito pouco mediático. Continuou a dar aulas, a orientar teses, a fazer pesquisa, a investigar, a publicar livros que até se vendiam, mas, sem partido político, detestando estar na ribalta e tendo exercido fora da Universidade apenas um cargo público (director da Biblioteca Nacional, em 1974, por convite do então ministro Vitorino Magalhães Godinho), foi sendo esquecido, se não mesmo marginalizado.

Jorge Sampaio, líder máximo dos estudantes de Lisboa na greve de 1962, em 1998 lembrou-se dele, quando, como Presidente da República, o condecorou com a Ordem da Liberdade. Oito anos depois, foi a vez de a Biblioteca-Museu República e Resistência o homenagear com várias sessões, durante as quais uma plêiade de participantes pôs em foco o seu pioneirismo de historiador social e económico e o seu papel de divulgador. Oliveira Marques esteve sempre presente, embora visivelmente debilitado, conforme o testemunha uma fotografia publicada no último número da revista História, dirigida por Fernando Rosas. Mês e meio depois morria. E foi então que, de repente, este país de memória curta se deu conta de que perdera um historiador que passara toda a vida a recuperar-lhe a memória.

(JL, n. 948,30 Jan. 2007)

fechar janela