A. H. de Oliveira Marques: memórias e percursos

Maria Helena da Cruz Coelho
Lente de História Medieval da FL/UC

No ano de 1975 ou 1976 eu batia – expressão literal – à porta do Prof. Oliveira Marques da sua casa, na Rua Francisco de Andrade.
Era então Assistente da Faculdade de Letras de Coimbra e não tinha, ao tempo, qualquer Professor Doutorado em História Medieval que me pudesse orientar. Tinha apresentado, em 1971, um tese de licenciatura sobre O Mosteiro de Arouca e nela sentira um gosto muito particular pelo estudo do meio rural em que a instituição se inseria.
Queria, pois, realizar um doutoramento em História rural, tomando como campo de análise uma região no entorno conimbricense, que concretamente veio a ser a espacialidade entre Coimbra e a Foz do Mondego, a conhecida região do Baixo Mondego. Ora o único medievalista português que até àquele ano havia escrito um trabalho de fundo sobre a temática era o Prof. Oliveira Marques, que, em 1962, publicara a História da Agricultura em Portugal.
Com a afoiteza dos meus verdes anos, dirige-me pessoalmente a esse historiador, que até então só conhecia pela leitura. E a porta a que bati abriu-se-me completamente. O Mestre aceitou ser meu orientador e, o tempo o diria, viria a ser mesmo muito mais do que isso, um Amigo.

Pesquisar e reflectir sobre os dados recolhidos nessa investigação para doutoramento foi para mim um tempo feliz. Se eu era trabalhadora e metódica, o Prof. Oliveira Marques ultrapassava qualquer ser humano nessas qualidades. Logo o trabalho ia avançando a ritmo certo e programado. Claro que mais no tempo de investigar e trabalhar os dados, menos no de escrever, que é muito mais lento e subjectivo. Mas justamente quando, como acontece a qualquer um, o espaço dos nossos encontros se alongava, porque surgiam dúvidas sobre a pertinência do que estava a fazer ou a escrita emperrava, aí estava o telefone a tocar. Era o Prof. Oliveira Marques a incutir-me ânimo e a dar-me força.
Tive pois o melhor orientador possível – sabedor do tema que orientava e oferecendo-me todo o estímulo que eu precisava. As nossas sessões de trabalho eram uma alegria. Primeiro trabalhávamos a sério e sem pausa, mas depois, depois vinha o tempo de conversarmos sobre tudo. Não sei o que mais me enriquecia, se o aprofundamento da história rural medieval ou o conhecimento dos meios, dos homens, das vivências que o Prof. tinha adquirido e comigo partilhava. Sempre gostei de conversar, melhor direi, de escutar um bom conversador. Oliveira Marques, na sua assumida urbanidade, sabe, como poucos, transmitir o que pensa e apreende. E assim fui-me aproximando sempre e mais de um Mestre, e admirando um Homem. Mestre que acompanhou todas as provas e concursos da minha carreira universitária até eu chegar em 1991 a Professora Catedrática. Homem que sempre fui considerando pela frontalidade e verticalidade por que pautou a sua vida. Para finalmente ter ganho um Amigo, com quem venho partilhando, os bons e maus momentos, há mais de três décadas.
Por isso foi-me muito grato participar na Homenagem que lhe foi feita em 1982 e mais ainda recebê-lo, no fim da sua carreira, em Coimbra, numa das suas últimas lições, e de ter coordenado, juntamente com o meu Colega Carvalho Homem, a obra Na Jubilação Universitária de A. H. de Oliveira Marques, onde se condensam estudos sobre a sua polifacetada vida e obra.

E depois deste registo mais pessoal, era sobre essa obra, sobremaneira como medievalista, que me queria fixar por uns momentos.
Oliveira Marques foi muito precoce na sua produção científica. E produziu obras maiores fora do tempo. Mas que, depois do tempo, vieram a ser consagradas.
Nomeado 1º Assistente da Faculdade de Letras de Lisboa, a 17 de Outubro de 1960, entregou, a 10 de Maio de 1962, como dissertação, já impressa, a Introdução à História da Agricultura em Portugal. A questão cerealífera durante a Idade Média, para concurso a professor extraordinário, concurso que, por vicissitudes políticas várias, nunca se realizou, acabando mesmo Oliveira Marques por abandonar a Faculdade e a função pública, a 17 de Novembro de 1964, rumando como docente para os Estado Unidos da América.
A História da Agricultura aborda, com detalhe, aspectos da produção, circulação e comercialização dos cereais. Nas condições de produção o estudo trata dos importantes vectores do clima, solo arável e mão-de-obra, nas áreas de produção analisa o solo cultivado, os cereais produzidos e o quantitativo da produção, para nos meios de produção se deter sobre as técnicas agrárias, as formas de propriedade e as formas de exploração agrária e a panificação. A análise da circulação e distribuição interna dos cereais leva o Autor a estudar celeiros e covas, a organização do comércio interno e as vias de comunicação, para depois se fixar na importação e exportação no âmbito do comércio externo e ainda a precisar as técnicas comerciais e os movimentos dos preços e dos consumos. Compreende-se bem que, dada a abrangência e variedade dos temas estudados, esta obra se tenha tornado modelo para os investigadores que à história agrária, e mesmo à história económica, se vieram a dedicar.
Mas o impacto desta magna obra, porque o seu Autor, como se disse, sempre esteve adiantado em relação ao seu tempo, só se sentiu verdadeiramente nas décadas de setenta e oitenta nas teses de doutoramento sobre história rural que então se produziram. E a obra conta actualmente com três edições.
Dois anos depois, em 1964, saía à estampa o estudo A Sociedade em Portugal nos séculos XII a XIV, obra que já conhece quatro edições, para além de um tradução inglesa.
O autor demonstrava, nos inícios do seu labor historiográfico, uma inequívoca propensão para a valorização dos temas sociais. Mas Oliveira Marques estava algo só. Verdadeiramente apenas na década de 80, depois de alguns trabalhos mais profundos sobre a clerezia e nobreza, se deu relevo a todas as valências dos diversos estratos que compunham a sociedade medieval portuguesa e se incidiu sobre os aspectos do seu quotidiano de viver, sentir e morrer. Então a obra de Oliveira Marques A Sociedade Medieval Portuguesa torna-se “uma Bíblia”. Não se pode discorrer sobre as funções e os ritmos de trabalho do homem medieval, sobre as suas condições de habitabilidade, higiene ou saúde, sobre as suas manifestações exteriores de vestuário e mesa, sobre os seus afectos e crenças, sobre os seus valores culturais ou distracções ou sobre os seus modos de encarar a morte, sem recorrer a essa obra fundamental. Sempre, assim o cremos, este estudo será uma referência para quem se dedique à história medieval. Esta a característica maior da obra dos grandes Mestres.
Ainda no mesmo ano de 1964 saía a público um outro trabalho de profundo impacto na comunidade historiográfica dos medievistas. Trata-se do Guia do Estudante de História Medieval Portuguesa, já com três edições. Nenhum estudioso do período medieval terá deixado de consultar esta obra, roteiro de fontes e bibliografia, mas também incentivadora da investigação medievística, na proposta de novas sendas de pesquisa e métodos de trabalhos.
Ainda na década de 60 (1965), em que este autor deixou marca maior na historiografia medieval, a par das monografias já referidas, acrescentam-se-lhe ainda estudos fundamentais, constituindo comunicações a congressos ou artigos de revista, que vieram depois a englobar-se na obra Ensaios de História Medieval Portuguesa, abordando-se na maioria dos trabalhos, como era timbre da época, a história económica. Sem esquecer que, entre 1963 e 1971, escrevia mais de oitenta artigos para o Dicionário de História de Portugal, grande parte deles dedicados a temas medievais.

Mas, por contraponto, o saber de Oliveira Marques não fez apenas renovar a história rural mas vivificar igualmente a história urbana. Esta talvez mesmo do maior gosto e interesse deste professor, um citadino por excelência, ainda que não tenha publicado até agora o trabalho de fundo que sempre sonhou, pela muita investigação desenvolvida, sobre Lisboa medieval. Nesta temática prevalecem os seus estudos mais particularizados, primeiro apresentados sob a forma de comunicações e depois reunidos em obra conjunta, o seu magistério e a sua orientação de teses de Mestrado e Doutoramento. Na colectânea Novos Ensaios de História Portuguesa, que me é afectivamente muito cara, pois, em gesto único de um grande Mestre e Amigo, o Autor ma dedicou, reúnem-se onze estudos sobre história urbana.
São artigos produzidos entre 1981 e 1987, período durante o qual Oliveira Marques regia, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no âmbito do Mestrado em História Medieval, o Seminário sobre “Cidades Medievais”, do qual resultaram muitas teses sobre grandes ou pequenas vilas e cidades, bem como um precioso roteiro sobre vários centros urbanos de Portugal. À leccionação de Oliveira Marques nesses Seminários e à sua devotada entrega como orientador científico se ficam a dever dissertações de Mestrado ou Doutoramento que particularizam o tecido urbano de centros como Ponte de Lima, Chaves, Guarda, Aveiro, Tomar, Óbidos, Alenquer, Santarém, Abrantes, Sintra, Setúbal, Évora e Silves. E como fruto desse mesmo Seminário, no ano lectivo de 1986-87, sob a sua coordenação sai a lume o Atlas de Cidades Medievais Portuguesas, que individualiza muitos centros urbanos espalhados pelas Comarcas de Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Entre Tejo e Guadiana e Algarve, alcançando mesmo a Madeira. Ainda uma vez mais, e inequivocamente, esta significativa e valiosa produção sobre a história se deve ao pioneirismo e entrega de Oliveira Marques no desbravar de novas facetas do passado medieval.
Do mesmo modo que, consciente de que a história só se pode construir sobre alicerces seguros, no Centro de Investigação que criou naquela mesma Faculdade, o Centro de Estudos Históricos, tem vindo a dirigir uma equipa, a qual com grande empenho e regularidade, publicou já vários volumes de Chancelarias e Cortes Régias, edição de fontes que prestam um relevante serviço a toda a comunidade científica em Portugal e mesmo no estrangeiro.

Mas sem tudo poder abarcar nestas breves palavras, salientemos ainda o espírito de síntese e divulgação de Oliveira Marques.
Este vasto saber condensou-se, de pronto, em amplas sínteses e, no ano de 1972, publicou o primeiro volume de uma História de Portugal, que pretendia dar a conhecer o passado pátrio no estrangeiro, sendo por isso a obra simultaneamente publicada em Lisboa, Londres e Nova York. Obra que marcou um tempo. Nenhuma outra História de Portugal havia saído depois daquela que é conhecida como a História de Portugal de Barcelos. E esta, como sempre límpida na escrita e clara na sua arquitectura, abria-se às temáticas económicas e sociais que então inovavam. Com sucessivos aumentos, pois que de um volume chegou a três, e alcançando mesmo a história do tempo presente, tem já treze edições. Mais, para além da versão inglesa e portuguesa, foi traduzida para francês, japonês, castelhano e polaco. E a partir dela Oliveira Marques elaborou uma Breve História de Portugal que conhece versões em francês, inglês, chinês, romeno, alemão e italiano.
Mas em matéria de sínteses o sonho era mais alto. Entre 1981-82 lança-se no projecto da na publicação da Nova História de Portugal e a Nova História da Expansão Portuguesa. Saíram da primeira oito volumes e da segunda dez volumes. E nos últimos anos muito do seu melhor tempo, do seu contínuo esforço, da sua denodada vontade foram investidos nesta empresa. Amor e dor, alegria e tristeza, lhe têm vindo deste projecto. Mas a obra aí está para servir os historiadores. A Nova História assume-se como uma síntese eminentemente didáctica e informativa, mas também muito actualizada. Face ao desenvolvimento dos diversos campos históricos e a um saber especializado, cada volume tem o seu coordenador e por dentro dele colaboram os investigadores que particularmente se têm dedicado às diferentes temáticas. Mas a superior orientação dos volumes é do Prof. Oliveira Marques. Escreveu sozinho um dos volumes, o quarto, que envolvia os séculos XIV e XV, coordenou outros e escreveu capítulos em muitos mais, por gosto ou por necessidade de suprir faltas.
Estou bem por dentro deste Projecto. Porque muitos dos nossos diálogos decorreram em torno das expectativas e dos desânimos que esta obra carrega. Mais objectivamente coordenei, juntamente com o meu Colega Carvalho Homem, o volume III da Nova História. E sei bem como essa coordenação foi árdua para concertar tempos, limites de páginas e escritas de doze colaboradores, melhor compreendendo o labor geral do Mestre. Mas foi-me muito grato partilhar mais esta vivência com o Prof. Oliveira Marques.

Quem escreve a uma só mão uma História de Portugal, como a que saiu em 1972, domina a história toda. Para além de que o medievalista Oliveira Marques é também o historiador especialista da I República ou da história da maçonaria. Por isso a obra Na Jubilação de Oliveira Marques foi construída na base de análises das diversas linhas fortes da sua vastíssima produção científica.
Na história da história dos séculos a haver o nome de Oliveira Marques ficará para sempre gravado. E a memória histórica de Portugal e dos Portugueses, ontem, como hoje ou amanhã, será conhecida em países europeus como a Espanha, a França, a Inglaterra, a Itália, a Alemanha, a Polónia e a Roménia ou transcontinentais como os Estados Unidos da América e Brasil, onde também ensinou durante alguns anos, e mesmo ainda na China e no Japão, graças ao labor de Oliveira Marques.

Nestas palavras ficaram traços de uma obra. Sobre Oliveira Marques, o cidadão comprometido com a sociedade e a política do seu tempo, a ponto de conhecer o exílio, ou o homem frontal e de vontade firme, apoiante de causas e ideais, outros falarão melhor do que eu.
Mas, acreditem, também todas essas vertentes do seu carácter eu conheço e admiro. E até outras mais. Gostos de músicas, de dança e de cinema, gostos de saborear boas iguarias e bebidas, gostos de bem parecer e de bem estar, gostos de viajar, gostos de mimar certos animais…Mas o íntimo e pessoal é de cada um de nós. E esse guardo-os por dentro de mim, como a relíquia de uma dedicatória.

(texto da intervenção na Biblioteca-Museu República e Resistência, em 11 Dez. 2006)

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